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Opposition supporters wave a Venezuelan flag during a march in Caracas on 3 December 2016. CRISIS GROUP/Sofía Martínez
Op-Ed / Latin America & Caribbean 7 minutes

Dura aterragem na Venezuela

A Venezuela está à beira do precipício. A ação concertada ainda pode evitar a sua queda. Mas quanto mais se atrase, mais venezuelanos morrerão por falta de medicamentos, pela má nutrição ou pela violência.

A Venezuela foi, uma vez mais, a exceção democrática latino-americana. Num continente dominado por ditaduras militares, o sistema bipartidário que se instalou depois da queda do general Marcos Pérez Jiménez em 1958 apresentou-se como pacífico, próspero, aparentemente, pluralista. Baseado na distribuição de rendas do petróleo, começou a esgotar-se nos anos 80 quando o rendimento `per capita caiu, num ambiente de corrupção crescente, de punhaladas pelas costas e falta de visão política. Ao preencher esse vazio estabeleceu-se uma chefia militar, com um certo toque messiânico, e um desdém pela democracia representativa.

Tendo tentado (e fracassado) a conquista do poder pela força em 1992, Hugo Chávez foi eleito presidente por uma ampla margem em 1998 e sobrevivei (ainda que por pouco) uma tentativa de golpe de estado, marcados os três anos da sua presidência. Devido a um golpe de sorte, a industria do petróleo estava prestes a viver o maior boom da sua historia, o que permitiu a Chávez comprar um amplo apoio politico, tanto domestica como internacionalmente. Que o seu programa não era sustentável a meio ou longo prazo era evidente para qualquer pessoa que tivesse uma mínima noção de como funciona o ciclo das matérias primas. Mas este ciclo crescente, combinado com o poder do antigo líder golpista, era mais que suficiente para manter na linha uma oposição desmoralizada e fragmentada, cujo populismo Chávez também tinha roubado.

O Chavismo, que é como esta heterodoxa doutrina foi imediatamente batizada, consistia em qualquer coisa que o antigo oficial do exercito dissesse mal se levantasse da cama pela manha. Depois de anos negando que fosse socialista, em 2006 lançou uma campanha para a sua reeleição desde uma plataforma de esquerda radical. Os militares Chavista, que um dia insistiram em que só desejavam a melhoria do capitalismo, passaram ao enaltecimento das virtudes do controlo estatal dos meios de produção. As expropriações incluíram desde a eletricidade ao fabrico de garrafas de vidro. O Estado produzia qualquer coisa, desde gelados a fraldas para bebés.

Hugo Chávez morreu prematuramente, de cancro, em 2013. Na sua ultima, e dramática aparição televisiva, investiu como sucessor o então ministro dos negócios estrangeiros, Nicolás Maduro. Ao faze-lo punha em marcha, de alguma forma, o piloto automático. Formado em Cuba e antigo líder da Liga Socialista, de extrema esquerda, Maduro permaneceria leal ao marxismo utópico querido ao seu carismático mentor político. Sendo ele civil, contudo, supunha que nunca disfrutaria da total confiança do exército. E as suas decisões, contrariamente às de Chávez, teriam que ser ratificadas por uma liderança coletiva: o chamado Comando Político-Militar da Revolução Bolivariana.  

No coração do sistema politico desenhado e implementado por Chávez reside a mesma contradição fundamental que agora ameaça com destrui-lo. Como autocrata populista, que explicitamente repudiava a noção de alternância no poder, e que no principio tentou alcança-lo pela via do golpe de Estado, Chávez tinha-se deixado seduzir pelo facto que podia ganhar eleições e cimentar, desta forma, a sua legitimidade. Mas as eleições nunca foram pensadas verdadeiramente como algo que pudesse implicar uma mudança de governo.  

Chávez aprovou, num ato de desmesura que agora persegue o seu sucessor Nicolás Maduro, o estabelecimento de um sistema de voto eletrónico que converte a fraude no reconto de votos em algo praticamente impossível. Se bem que o campo de jogo está exageradamente inclinado a favor da campanha governamental.

A oposição demorou anos e uma larguíssima travessia por um deserto político, para acabar por se dar conta coletivamente de qual era o calcanhar de Aquiles do Chavismo. Mas uma vez que se aperceberam disto, uniram-se para explorar esta fraqueza, seguindo uma estratégia eleitoral que alcançou um alto rendimento com a inaudita vitoria do Movimento de Unidade Democrática (MUD) nas eleições legislativas do mês de dezembro.

O MUD conseguiu 56% dos votos e alcançou dois terços dos lugares parlamentários, ajudado por dois acontecimentos quem estavam completamente fora do seu controlo: a morte de Chávez em 2013, vitima de cancro, e o colapso dos preços do petróleo pouco depois, que precipitou uma económica já frágil numa depressão profunda.

E agora, o seu objetivo é afastar Maduro do poder usando outro elemento da herança Chavista: o referendo revocatório presidencial de metade do mandato. Mas, com 80% dos inquiridos dizendo que querem que Maduro se vá embora antes do final do ano, o governo vê agora as eleições, e especialmente as eleições presidenciais, como uma espécie de vade retro. No caso de que consiga usar o controlo que detém sobre o Conselho Nacional Eleitoral para atrasar o referendo até, pelo menos, mediados de janeiro de 2017, a constituição converte-se numa boia salva-vidas. A destituição do presidente durante os dois últimos anos de mandato (que na Venezuela é de seis anos), não implica umas eleições presidência imediatas. Pelo contrário, é o vice-presidente (nomeado por Maduro) quem completa o mandato.

De acordo com a Constituição de 1999, redigida por Chávez e os seus aliados, e ratificada em referendo, o Estado Venezuelano está composto por cinco poderes independentes. Para além do poder legislativo, do executivo e do judicial, existe um ramo eleitoral (CNE) e um ramo cidadão composto por uma oficina da procuradoria publica, uma auditoria estatal e um provedor da justiça. Todos menos o poder legislativo são, na prática, meros apêndices do poder executivo, e estão compostos quase exclusivamente por partidários incondicionais do governo.

Os lideres militares estão obrigados a citar consignas políticas e a jurar fidelidade ao Chavismo, convertendo desta forma as forças armadas num braço uniformizado do partido no poder. Uma milícia socialista, e grupos de civis armados, mantem à distancia a dissidência. No dia 11 de julho, Maduro anunciou que a partir de agora todos os ministros e departamentos governamentais prestarão contas ao ministro de defesa, o General Vladimir Padrino Lopez. O militar de mais alto nível do país é neste momento uma espécie de primeiro-ministro.

Enquanto Chávez abolia sistematicamente a separação de poderes, e desmantelava controlos e contrapesos, os seus vizinhos olhavam para o outro lado, ou aplaudiam-no como o herói dos pobres. Em privado, admitiam por vezes, com um encolhimento de ombros, que se tratava de um autocrata. “Que lhe havemos de fazer?” – preguntou um embaixador, expressando em voz alta o que muitos pensam, “se é nisso que continuam a votar os venezuelanos”.

A maior parte deixou de votar a favor “da revolução”, que já não pode garantir-lhes algo tao básico como a comida medicamentos e segurança pessoal.  Mas a Assembleia Nacional, dominada desde janeiro pela aliança opositora, mostrasse impotente. As suas leis são declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Superior de Justiça (TSJ); os ministros do governo negam-se a comparecer; e a sua própria existência foi posta em duvida. Aplicando um insuportável (e inconstitucional) estado de emergência nacional, Maduro governo por decreto. “A Assembleia Nacional perdeu vigência politica”, disse Maduro à imprensa internacional no passado mês de maio, “e é uma questão de tempo até que desapareça”.

O CNE conseguiu, até agora, atrasar 4 meses a autorização do MUD para recolher 20% das assinaturas do eleitorado que se requerem para iniciar o referendo revocatório. O governo insiste em que é impossível celebrá-lo este ano, e ao TSJ falta-lhe somente um par de assinatura antes de que o mesmo seja devolvido ao ponto de partida, declarando que a oposição poderia ser culpada de fraude. Os esquadrões anti distúrbios da Guarda Nacional mantêm os protestantes à distancia, enquanto impões zona de “segurança” e “paz”, onde as manifestações da oposição estão proibidas. Os que recolhem assinatura para pedir o referendo são despedidos no sector público ou obrigados a revocar a sua assinatura.  

Lentamente, os estados membros da Organização de Estados Americanos (OEA) estão-se a mexer para fazer cumprir as regras da democracia representativa nas que se fundamenta o sistema interamericano. Luís Almagro, ex-ministro de exteriores uruguaio e agora secretário general da OEA, está a tentar que a vergonha os obrigue a atuar. Mas os governos de muitos estados membros são reticentes chegada a hora de criar o precedente de que se possa intervir, apoiando o legislativo frente ao executivo, por uma questão de principio.

Os riscos de não fazer nada são muitos. A Venezuela pode dissolver-se num violento caos, ou entrar num período de pobreza crónica e desgoverno. Os países vizinhos já estão a prever que o fluxo de emigrantes vá aumentar devido aquelas pessoas fugindo da violência, da fome, da doença, ou das três coisas ao mesmo tempo. Em maio, a Cruz Vermelha de Coração, disse que se estava a preparar para receber refugiados venezuelanos. Trinidad informa que já recebeu mais de 100 pedidos de asilo que no levamos de 2016, assim como um numero cada vez maior de venezuelanos à procura de comida ou atenção médica. Quando no dia 10 de julho a fronteira entre a Colômbia e a Venezuela se abriu brevemente, as autoridades colombianas informaram que 35.000 venezuelanos a cruzaram, na sua maioria para comprar comida e outros produtos de primeira necessidade.

Perante o colapso atual do serviço de saúde na Venezuela, controlar a expansão de epidemias na região será muito mais difícil. Não insistir no cumprimento das normas democráticas só pode animar outros aspirantes a autocratas.

A Carta Democrática Interamericana, invocada por Almagro a finais de maior, permite à OEA exercer o seu peso diplomático contra governos que, ainda que tenham sido eleitos, governam de forma ditatorial. Isso significaria impulsar um processo de negociação sério, com uma agenda clara e um calendário rigoroso. Isto deveria substituir, ou pelo menos reforçar, o nebuloso e unilateral “diálogo” iniciado pelo ex-presidente espanhol José Luís Rodriguez Zapatero sob o auspicio de Ernesto Samper, secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (UNASUR).

Sem mediadores que disponham tanto da confiança tanto do MUD como do governo, sem um genuíno processo de negociações, há pouca esperança de alcançar uma situação pacífica e democrática. No improvável caso de que se permita que o referendo revocatório vá para a frente segundo o calendário, pode muito bem acontecer que se desate a violência de forma imediata, ou que se entre num prolongado período de instabilidade política.

Entretanto, a comunidade internacional deve exigir ao governo de Nicolás Maduro o fim dos bloqueios às donações de alimentos e de medicamentos. A Venezuela está à beira do precipício. A ação concertada pode ainda evitar a sua queda. Mas quanto mais se atrase, mais venezuelanos morrerão por falta de medicamentos, devido à má nutrição e à violência. E mais dificil será para o país recuperar-se.

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