O Brasil está de volta: as divisões da América Latina podem ser superadas?
O Brasil está de volta: as divisões da América Latina podem ser superadas?
Commentary / Latin America & Caribbean 11 minutes

O Brasil está de volta: as divisões da América Latina podem ser superadas?

O retorno de Lula à presidência promete um papel mais forte para o Brasil na diplomacia multilateral. Neste trecho da Watch List 2023, o Crisis Group insta a UE e seus Estados membros a aproveitar ao máximo esta oportunidade.

O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil pode marcar uma virada na luta da América Latina para superar suas divisões no enfrentamento de problemas regionais e globais, incluindo crises de longa data na vizinhança. Com um corpo diplomático profissional, uma grande economia e um líder amplamente respeitado, o Brasil se destaca como uma força que pode impulsionar a cooperação para enfrentar os desafios mais sérios da região e estimular o envolvimento da América Latina na diplomacia multilateral, assim como aconteceu durante os dois primeiros mandatos de Lula, de 2003 a 2010. Mas há uma ressalva. Lula está enfrentando dificuldades domésticas muito maiores desta vez, o que deve moderar as expectativas sobre o alcance de sua política externa. O Brasil sofre de profundas divisões políticas, como comprovado pela violência da extrema-direita na capital Brasília em 8 de janeiro, bem como dificuldades econômicas, que podem prejudicar as ambições do novo governo fora do país. No entanto, apesar do clima interno turbulento, o novo governo pretende restaurar o status do Brasil como uma voz proeminente no cenário internacional, enquanto o peso econômico e geopolítico do país significa que ele ainda pode contribuir de forma significativa para a paz e estabilidade regional.

Não faltam dilemas para o Brasil enfrentar. A instabilidade iminente é uma preocupação em toda a região em meio à intensa insatisfação pública com os líderes políticos e desigualdade econômica, enquanto o tratamento desarticulado da pandemia de COVID-19 e as divergências regionais sobre crises em vários países destacam a dificuldade de enfrentar desafios compartilhados. Ao estabelecer suas prioridades de política externa, o primeiro e maior objetivo de Brasília deve ser o de ajudar a reconstruir a coordenação interestatal na América Latina e no Caribe, objetivo crucial tanto para lidar com crises quanto para as chances do Brasil se projetar no cenário mundial e permitir que outros blocos se envolvam de forma mais produtiva com a região. Em segundo lugar, o governo de Lula está bem posicionado para liderar esforços para reanimar a cooperação regional para proteger o meio ambiente, particularmente a floresta amazônica. Em terceiro lugar, graças aos seus estreitos laços com a esquerda e relacionamento sólido com várias potências globais, Lula poderia desempenhar um papel importante em facilitar uma solução negociada para o impasse na Venezuela. Finalmente, a destreza diplomática do Brasil poderia chamar atenção para a crise do Haiti na região e equilibrar o protagonismo dos EUA e do Canadá, o qual os haitianos tendem a ver com desconfiança.

A fim de apoiar o Brasil na busca dessas prioridades, as quais podem contribuir para maior paz e segurança na América Latina, a União Europeia (UE) e seus Estados membros devem: 

  • Trabalhar com o novo governo brasileiro para fortalecer a integração regional e, ao fazê-lo, melhorar os laços europeus com as contrapartes latino-americanas e caribenhas. A UE deveria, por exemplo, fortalecer sua atual parceria com a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), dentre outras formas por meio de apoio financeiro e técnico para a integração regional.
  • Oferecer apoio diplomático e financeiro aos novos esforços do Brasil em relação à proteção ambiental e, principalmente, à reativação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica.
  • Auxiliar o Brasil na mobilização de iniciativas regionais para encorajar o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, a melhorar as condições eleitorais antes da eleição presidencial em seu país programada para 2024 em seu país e buscar o apoio de parceiros regionais para a implementação das principais recomendações da Missão de Observação Eleitoral da UE de 2021. Bruxelas deve explorar com Brasília, Washington e as capitais regionais uma abordagem que enfatize a flexibilização progressiva das sanções dos EUA e da Europa contra Caracas em troca de tais condições melhoradas.
  • Trabalhar com o Brasil e outros países da região para ajudar a enfrentar a crise no Haiti, promovendo um acordo entre o primeiro-ministro interino Ariel Henry e a oposição que permitiria a formação de um governo de transição, bem como buscando amplo apoio internacional para qualquer eventual intervenção.
(E - D)A ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara, a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa Rosangela da Silva chegam ao Palácio do Planalto para a cerimônia de posse de Guajajara. SERGIO LIMA / AFP

Reconstruindo a cooperação latino-americana

Durante anos, a América Latina não conseguiu agir de forma coordenada nas crises regionais ou falar a uma só voz nos acontecimentos mundiais. As divisões ideológicas, como aquelas por trás da tóxica disputa entre Venezuela e Colômbia de 2019 até o restabelecimento das relações em 2022, minaram a causa da unidade regional. Em seu lugar, divisões hemisféricas encorajaram a criação de plataformas regionais fracas, ad hoc e muitas vezes partidárias; deram maior influência a potências externas, sobretudo os EUA, Rússia, China e Irã, sobre alguns governos; impediram integração econômica; e tornaram cada vez mais difícil para órgãos regionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Organização dos Estados Americanos ou o Mercado Comum do Sul, fazer nomeações de liderança por consenso.

Cultivar uma unidade de propósitos mais forte na América Latina e a liberdade de estabelecer relações com todas as potências globais, sem alinhamento automático com nenhuma delas, destacam-se como dois dos principais temas condutores da nova política externa brasileira. Mas como as plataformas regionais se atrofiaram, não há atualmente um espaço produtivo onde todos os governos da região possam discutir questões prementes e cultivar posições conjuntas. Em seu discurso ao Congresso após a posse, Lula invocou sua promessa de voltar a integrar a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), fórum que ajudou a criar em 2008, mas que agora está moribundo depois que o ex-presidente Jair Bolsonaro optou (junto com os atuais e prévios governos de direita da Argentina, Colômbia, Equador e Uruguai) a abandoná-lo. Outras alternativas também apresentam problemas. A Organização dos Estados Americanos, que inclui os EUA e o Canadá, está em declínio acentuado há vários anos depois de ganhar a desconfiança de governos de esquerda. Em seu próprio discurso de posse, o Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, sequer a mencionou.

Mas há outra opção. O governo de Lula já anunciou o retorno do Brasil à CELAC (da qual Bolsonaro saiu após acusá-la de dar um “palco para regimes não-democráticos”) e participou da cúpula do bloco em Buenos Aires no final de janeiro. Esta organização é o interlocutor regional preferido da UE e da China, embora haja espaço para que se torne mais eficaz: a tomada de decisões é trabalhosa porque requer o apoio unânime dos países membros e a organização carece atualmente de um aparato institucional permanente para acompanhar e implementar acordos. Dito isso, as discussões sobre seu fortalecimento estão em andamento. Uma reunião entre autoridades da UE e chefes de Estado e de governo da CELAC, prevista para Bruxelas no verão, oferece uma oportunidade para que a UE reforce o papel do incipiente bloco, bem como fortaleça a cooperação com o Brasil e a América Latina como um todo.

Ligada à questão de onde os Estados latino-americanos devem discutir temas complexos está a questão de quais deveriam ser esses temas. No momento, há pouco consenso. Os governos latino-americanos divergem fortemente em suas opiniões sobre onde estão as principais ameaças à democracia e quais direitos políticos básicos precisam ser garantidos. A região, e particularmente sua esquerda tradicional, costuma dar grande importância aos princípios de soberania e de não ingerência nos assuntos de outros Estados. Mas a maioria dos governos ainda considera que esses princípios têm alguns limites quando direitos humanos e o respeito pelas instituições democráticas estão em jogo. A própria batalha do Brasil para garantir uma transferência pacífica do poder para Lula ressaltou a necessidade de mobilizar-se dentro e fora do país em defesa da democracia. Além dessas questões básicas de governança, há uma lista adicional de assuntos que clamam por níveis mais elevados de coordenação regional. A cooperação política de alto nível na resposta ao narcotráfico e ao crime organizado está praticamente inativa. Embora os governos tenham começado a colaborar melhor na promoção de uma migração segura e ordenada, eles diferem em suas políticas de fronteira e recepção.

Ainda assim, antes de poder enfrentar essas e outras preocupações compartilhadas, a região precisa primeiro definir o melhor fórum para reconstruir a coordenação e demonstrar vontade política de respeitar os compromissos que os governos possam assumir nesse contexto. Embora a maioria dos governos (especialmente na América do Sul) compartilhe uma perspectiva amplamente democrática e de esquerda, nenhum desses passos será simples. Condicionar a cooperação regional à coincidência ideológica com outros governos é um erro que os países latino-americanos não podem continuar cometendo. 

Passos concretos na Amazônia, Venezuela e Haiti

Juntamente aos esforços para reavivar a cooperação regional, o renovado engajamento brasileiro pode ser crucial para enfrentar várias crises na região. 

O primeiro é o estado da bacia amazônica. Esforços para forjar abordagens conjuntas para proteger o meio ambiente e lidar com as mudanças climáticas definharam sob o governo de Bolsonaro, que mostrou descarado desrespeito pelo destino dos arredores do rio e de seus habitantes indígenas. Com a área sendo crucial para os esforços de combate às mudanças climáticas e sofrendo uma presença crescente do crime organizado e do tráfico ilícito, o governo Lula deixou claro que deseja afirmar a liderança nesses temas convergentes. O chanceler Vieira anunciou que o Brasil realizará uma cúpula para reativar a Organização de Cooperação do Tratado Amazônico, formada pelos oito países que fazem parte do bioma (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela). Lula também está coordenando com o presidente colombiano Gustavo Petro, que provavelmente será um aliado crucial no avanço da causa da proteção ambiental.

As prioridades de Lula para a Amazônia incluem proteger o território dos povos indígenas, interromper o desmatamento ilegal e restringir a atividade de mineração em áreas específicas. Mas uma iniciativa regional nessa linha colocaria à prova a diplomacia brasileira, principalmente no tocante a buscar compromissos por parte da Venezuela, onde o presidente Maduro permitiu uma enorme expansão da mineração de ouro e outras operações de mineração na Amazônia, com a cumplicidade de militares e grupos armados não estatais, apesar de endossar nominalmente políticas verdes/ecológicas. 

Em segundo lugar, a Venezuela costuma ser de grande interesse para o governo Lula, ao mesmo tempo em que representa um teste sério para a influência diplomática do Brasil. Em contraste com a decisão de Bolsonaro em 2019 de seguir o exemplo do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, ao negar reconhecimento a Maduro, uma política que falhou em seu objetivo de derrubar o presidente venezuelano, Lula já imitou o governo de Petro na Colômbia ao restaurar os laços com Caracas. Especialistas em política externa próximos ao novo governo, e o próprio Lula, insistem que sua abordagem em relação à Venezuela, bem como ao governo cada vez mais autoritário do presidente Daniel Ortega na Nicarágua, será guiada pela crença no diálogo e no engajamento, em vez de demandas, sanções e ameaças. As afinidades de Lula com o falecido presidente venezuelano Hugo Chávez devem, em teoria, colocá-lo em uma boa posição para persuadir Caracas a mostrar um espírito de compromisso em suas negociações com a oposição, enquanto seu prestígio regional o ajudará a trabalhar separadamente com Washington.

Lula deve instar Maduro a adotar reformas que ajudem a garantir a competitividade da eleição.

Dito isso, é possível que líderes de esquerda na Venezuela, como em outras partes da região, apesar de suas antigas amizades com Lula, não estejam tão dispostos a restaurar os direitos políticos quanto as autoridades brasileiras desejam. Os líderes venezuelanos, em termos gerais, não estão dispostos a arriscar perder o poder nas eleições de 2024 e, apesar de um retorno às negociações na Cidade do México em 2022, podem resistir ao tipo de medidas em direção a um campo de jogo eleitoral nivelado que foi recomendado no relatório da Missão de Observação Eleitoral da UE sobre as eleições regionais de 2021. Dentre essas reformas, as principais são as reformas do sistema judicial para impedir o uso político partidário dos tribunais superiores para ratificar ou anular as reformas eleitorais. Mesmo que a proposta encontre resistência em Caracas, Lula deve instar Maduro a adotar reformas que ajudem a garantir a competitividade da eleição e garantir ao governo venezuelano que trabalhará para apoiar um acordo justo que respeite os interesses do chavismo.

Em terceiro lugar, como aconteceu nos dois primeiros governos de Lula, o Haiti representará um teste para a diplomacia do Brasil. O Brasil se destacou por ter liderado e fornecido tropas para a MINUSTAH, a missão de paz da ONU no país de 2004 a 2017. Embora as críticas a aspectos dessa missão sejam comuns no Haiti, sua saída foi seguida por um colapso violento. A violência criminosa desenfreada, a emergência humanitária e a turbulência política, incluindo o assassinato do ex-presidente Jovenel Moïse em julho de 2021, estimularam o primeiro-ministro interino, Henry, a convocar uma força internacional para combater as gangues. O Crisis Group observou anteriormente que tal força pode ser a melhor maneira de trazer alguma ordem ao problemático país, mas que deve ser implantada apenas com o apoio das principais forças políticas do Haiti, incluindo um acordo para trabalhar em conjunto na formação de um governo de transição legítimo. Caso essas condições surjam, o apoio do Brasil aos esforços para conseguir que o Conselho de Segurança da ONU endosse tal missão seria um enorme impulso para os países que lideram esse tópico em Nova York (os EUA e o México em 2022, embora o Equador tenha agora substituído o último no Conselho de Segurança). Isso poderia ajudar particularmente a convencer a Rússia e a China, que são cautelosas com o que consideram projetos dos EUA.

Também existem outras maneiras de Brasília apoiar a missão. Poderia, por exemplo, mediar entre Henry e a oposição nos esforços para formar um governo de transição. Se uma missão se forma, poderia contribuir com pessoal e assistência técnica. No mínimo, os diplomatas brasileiros podem elevar o perfil da crise do Haiti na América Latina e chamar atenção para a necessidade de uma consideração mais profunda de como as potências estrangeiras poderiam ajudar o país. 

O que a UE pode fazer 

A UE e seus Estados membros devem buscar formas de trabalhar com o Brasil para estreitar os laços com a América Latina e o Caribe. Entre outras coisas, vínculos mais fortes entre as duas regiões podem depender do fortalecimento da cooperação dentro da própria América Latina, por meio de instituições multilaterais mais eficazes estabelecidas em torno de valores compartilhados. Dado seu tamanho, recursos e o perfil regional de seu novo presidente, o Brasil poderia desempenhar um papel de liderança nesse esforço. A UE deve apoiar a consolidação regional por meio de apoio diplomático, bem como de assistência financeira e técnica que possa ajudar a fortalecer os órgãos regionais existentes, em particular a CELAC, que parece ser a plataforma preferida do governo Lula.

Ao mesmo tempo, a UE e os Estados membros devem ter o cuidado de reconhecer as restrições domésticas sob as quais o novo governo brasileiro está operando, incluindo um clima político altamente polarizado, e não sobrecarregá-lo com expectativas de avanços imediatos. Eles também precisarão aceitar a provável determinação do novo governo brasileiro de manter relações com todas as grandes potências, bem como seu objetivo principal de defender os interesses das nações em desenvolvimento em fóruns multilaterais.

Bruxelas também deve explorar a parceria com Brasília e aproveitar o apoio da região para iniciativas globais de interesse mútuo. Em particular, a UE deve usar sua força diplomática e financeira para apoiar as medidas brasileiras para reavivar a cooperação entre todos os países com território na Amazônia, buscando maneiras de fortalecer projetos ambientais financiados por Bruxelas e pelos Estados membros da UE.

Da mesma forma, a UE e os Estados membros poderiam expressar sua disposição de trabalhar com o Brasil em prol de seu interesse mútuo em ajudar adversários políticos na Venezuela a chegar a um acordo negociado. Um papel fundamental que eles poderiam desempenhar seria coordenar com o governo de Lula e a região, bem como com Washington, uma abordagem que enfatize o relaxamento progressivo das sanções dos EUA e da Europa contra a Venezuela em troca de melhores condições eleitorais antes da eleição de 2024. As condições a serem buscadas devem ser baseadas na avaliação realizada pela Missão de Observação Eleitoral da UE de 2021.

Por fim, o caso mais grave de extrema insegurança e emergência humanitária da região encontra-se no Haiti, onde o Brasil deve ser visto como fonte de expertise e autoridade de confiança, capaz de mediar forças políticas e potências internacionais de uma forma que países europeus e da América do Norte acham difícil. A UE e os Estados membros devem estar prontos para recorrer ao Brasil como um parceiro crucial na formulação de suas políticas para o Haiti, seja buscando um caminho para um governo de transição, obtendo o endosso da ONU para uma missão internacional ou angariando apoio regional e global para maior ajuda e atenção ao país. Neste caso, o reengajamento do Brasil na diplomacia multilateral é uma oportunidade que a UE, os EUA e outros países latino-americanos devem aproveitar.

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